20 anos, a invasão do Iraque

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O dia 20 de março marcou os 20 anos da invasão do Iraque
pelos EUA e seus aliados, especialmente o Reino Unido. A invasão e posterior
ocupação marcaram a desestabilização do Oriente Médio após uma guerra marcada
por mentiras e propaganda, com efeitos desastrosos sentidos até hoje no Iraque
e na região. Também é o ápice das políticas unilaterais dos EUA, abrindo de vez
a Caixa de Pandora da política internacional e das relações entre as potências
no século XXI.

O componente militar da invasão começou com um ataque aéreo
contra o palácio presidencial de Saddam Hussein, então ditador iraquiano, em
uma tentativa de ataque de decapitação. O episódio foi seguido de 40 dias de
combates até a completa ocupação do Iraque. A outrora poderosa máquina de
guerra iraquiana foi enfraquecida por uma década de sanções entre a Guerra do
Golfo de 1991 e a invasão de 2003, tornando a guerra fácil para os EUA,
surpreendendo muitas pessoas no período.

O foco da coluna, entretanto, não é o componente militar da
invasão, mas o fato de que ela começou a ser gestada muito antes. Justamente em
1991. Na época, com George H. W. Bush como presidente dos EUA, parte de seu
staff propunha a ocupação do Iraque e a derrubada de Saddam Hussein. Três
aspectos contribuíram para afastar essa ideia. Primeiro, o temor das
consequências militares de uma invasão em larga escala, com mais baixas nas
forças dos EUA e o uso de armas como mísseis balísticos contra Israel.

Estabilidade no Oriente Médio

Segundo, a interpretação, correta, de que uma ocupação do
Iraque seria um fator de instabilidade perene no Oriente Médio. O Iraque de
Saddam Hussein tinha um governo sunita, vertente religiosa de um terço da
população, enquanto quase dois terços são xiitas. Além da clivagem religiosa,
existe a clivagem étnica, com minorias expressivas como os curdos. A queda do
Iraque abriria caminho para conflitos internos entre essas populações, exatamente
o que acontece hoje.

Além disso, a queda do Iraque, uma potência regional árabe
sustentada pela riqueza de ter a terceira maior reserva de petróleo do mundo,
proporcionaria um cenário de disputas regionais. Por exemplo, com o Irã
expandindo sua influência no país, em suas relações com os xiitas, ou
eliminando uma potência árabe secular, fortalecendo as monarquias do golfo,
como sauditas. Novamente, exatamente o cenário que acontece hoje já era uma
possibilidade 30 anos atrás.

Finalmente, os EUA não ocuparam o Iraque e derrubaram em seu
governo em 1991 pois o mandato do Conselho de Segurança da ONU não autorizava
isso. A Guerra do Golfo foi uma resposta ao que foi interpretado como uma
guerra de agressão, a invasão do Kuwait. Recebeu aprovação no Conselho de
Segurança da ONU, incluindo o voto soviético, nos últimos meses de existência
da URSS. A comunidade internacional em peso apoiou a intervenção, mas não a
destruição do Iraque.

Naquele momento, o mundo era outro, especialmente devido à
existência de duas superpotências. O que fazia os EUA e a URSS respeitarem o
Direito Internacional e as decisões tomadas no âmbito da ONU era,
principalmente, o receio de uma escalada e de uma retaliação pela superpotência
antagônica. Pelo fator da negociação direta entre os dois países e do foco da
comunidade internacional em temas de segurança, a institucionalização
internacional e outras questões ficavam em segundo plano.

EUA vencedor da Guerra Fria

Com o fim da Guerra Fria, veio o alívio de que o mundo não
estaria mais sujeito ao fantasma do conflito nuclear. Com isso, o otimismo
internacional dos anos 1990, com a comunidade internacional focando em temas
como meio ambiente e direitos humanos. Cresceu o número de tratados e de
organizações internacionais, fortalecendo a ideia de que o Direito
Internacional seria, agora, essencial para reger as relações entre os Estados.
O otimismo, entretanto, veio acompanhado por outra mentalidade.

Em 1992, Francis Fukuyama, cientista político dos EUA,
propôs sua hipótese de que a implosão da URSS significava a derrocada do
comunismo e o “fim da História”. Os EUA representavam o modelo vencedor da
Guerra Fria, o ápice do desenvolvimento socioeconômico e modelo que deveria ser
exportado. Junto com isso, o pensamento de que os EUA foram a potência
vencedora e que o mundo agora seria unipolar. O papel dos EUA seria o de
exercer essa liderança de seus interesses.

A falta de contraste, sem a URSS, diminuiu a coesão internacional,
com a crescente ascensão de blocos ou potências para uma eventual ordem
multipolar, como a União Europeia e a China. A ideia de que os EUA eram os
vencedores, somada ao histórico excepcionalismo do país, tomou setores de
Washington de assalto, nos dois partidos. Bill Clinton, no discurso, combateu
essa postura, mas, na prática, inaugurou a era de ações unilaterais pelos EUA
ao bombardear a Sérvia em 1999.

Com George W. Bush no poder, a situação se intensificou. Os
ataques de 11 de Setembro engajaram a sociedade dos EUA. A Guerra ao Terror
começou com amplo apoio doméstico e a invasão do Afeganistão, em 2001, foi
autorizada no âmbito da ONU. O gabinete de Bush filho, entretanto, era dominado
por falcões. Um nome influente na formulação de sua política externa era o de
John Bolton, que falava, e fala, abertamente que os EUA têm o direito de fazer
o que desejarem em nome de seus interesses.

Violação do Direito Internacional

Desse gabinete, sai a ideia de invadir o Iraque. Uma
proposta baseada em mentiras descaradas, como a infame busca por armas de
destruição em massa, inexistentes. Ou que o governo Saddam Hussein seria
financiador da Al-Qaeda, outra mentira, já que seu governo secular não via os
grupos jihadistas com bons olhos. Ainda assim, Washington leva o tema ao
Conselho de Segurança da ONU. A intervenção é vetada, com resistência russa e
francesa, estremecendo as relações entre os aliados da OTAN.

O governo dos EUA ignora o resultado e mobiliza a maior
máquina militar da História para a invasão. Junto das centenas de bilhões de
dólares em equipamentos e munições mobilizados para a invasão, é aberta uma Caixa
de Pandora que está escancarada até hoje. O Direito Internacional, na falta de
mecanismos de força ou de imposição, precisa do consenso e do respeito mútuo.
Se um país, uma potência, se dá o privilégio de violar o mesmo direito que
jurou cumprir, o que impede os outros de fazerem o mesmo?

Todas as violações ou negligências do Direito Internacional dos últimos 20 anos remetem ao momento em que os EUA invadiram o Iraque ao arrepio do Conselho de Segurança da ONU, do qual o mesmo governo de Washington faz parte. E não se trata de justificar a anexação da Crimeia ou a falta de entrega de um criminoso de guerra, mas de constatar que um precedente baseado na força unilateral foi aberto em 2003. E, até esse precedente ser corrigido e criticado pelo seu criador, a Caixa de Pandora continuará aberta.

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